A urgente quebra das patentes dos componentes das vacinas anti Covid-19

A urgente quebra das patentes dos componentes das vacinas anti Covid-19

Estamos diante de uma pandemia mundial e os países se dividem entre aqueles que conseguem produzir a vacina e os que precisam de ajuda para fabricá-la em parte ou no todo. A disparidade no acesso à vacina escancara o Diferencial de Pobreza (DDP) como forma extrema da Divisão Internacional do Trabalho (DIT). A situação é complexa e, muitas vezes, desumana.

O Sistema Internacional opera com, ao menos, três elementos centrais:

- Excedentes de Poder produzidos por países ou unidades políticas coesas (como a União Europeia);

- Instituições que vão atenuando os conflitos entre os países mais poderosos e tentam diminuir o abismo mundial, propondo uma agenda humanitária;

- Conglomerados transnacionais com maior ou menor controle por parte dos Estados, que concentra seus núcleos de controle.

O arranjo dessas três variáveis muitas vezes oferece “janelas de oportunidade” para avanços da humanidade, que podem ser verificados, por exemplo, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, ato praticamente fundacional do complexo da Organização das Nações Unidas (ONU) e suas agências. Um conjunto de possibilidades está aberto no momento em que vivemos. Proponho, nesse breve texto, uma análise de tipo estrutural, que toma por base o caso da penicilina e, após, a dois componentes no tratamento da AIDS no Brasil.

A penicilina

Vejamos o que ocorreu no período anterior à Segunda Guerra, até o início do conflito mundial:

“Imagine uma descoberta que possibilitasse a cura de várias doenças fatais e que permitisse salvar a vida de milhões de pessoas de uma só vez. Pensou? Pois essa descoberta já aconteceu! A penicilina é um remédio tão fantástico que seus efeitos chegaram a ser comparados a um milagre.” (https://www.invivo.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=7&infoid=811).

A penicilina e o esforço do pesquisador Alexander Fleming teria sido em vão caso o Império Britânico não estivesse diante de uma ameaça concreta. Sua descoberta em laboratório ocorreu na Inglaterra, em 1928. Entretanto, apenas diante de uma necessidade máxima – Razão de Estado segundo os conceitos clássicos - convenceu uma potência capitalista a desenvolver, em escala industrial, a produção da droga que aumentou a expectativa de vida de toda a humanidade.

“Devido às dificuldades de se produzir penicilina em quantidade suficiente para ser usada no tratamento de pacientes, inicialmente, a descoberta de Fleming não despertou maior interesse na comunidade científica. Foi somente com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939, que dois cientistas, Howard Florey e Ernst Chain, retomaram as pesquisas e conseguiram produzir penicilina com fins terapêuticos em escala industrial. Assim, estava inaugurada uma nova era para a medicina - a era dos antibióticos. Por suas pesquisas, Fleming, Florey e Chain receberam, em 1945, o Prêmio Nobel de Medicina.” (https://www.invivo.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=7&infoid=811).

Licenciamento compulsório no tratamento da AIDS no Brasil

O tema da quebra das patentes e o licenciamento compulsório do chamado coquetel de retrovirais no tratamento da AIDS é um consenso no debate sobre saúde pública no país. Na virada do século XX para o XXI, o tema ainda era tabu. No último ano do primeiro governo de coalizão de centro do ex-presidente Lula foi “decretada ontem a primeira quebra de patente de um medicamento no Brasil - o Efavirenz, do laboratório americano Merck Sharp&Dohme, usado no tratamento da AIDS” (https://www.giv.org.br/Not%C3%ADcias/noticia.php?codigo=1674, indexando matéria da Folha de São Paulo, com data de 05/05/2006). A ameaça de quebra de patentes para medicamentos aplicados no coquetel para VIH já havia dado resultado concreto no período FHC, segundo governo, quando José Serra foi ministro da Saúde (março de 1998 a fevereiro de 2002). A queda de braço com os chamados “Big Labs” oscila entre ameaças de cessar a venda de remédios fundamentais ou a pechincha, de modo que esses produtores não apliquem preços abusivos. Quando um país está com força suficiente e garante fornecedor de propriedades e princípios ativos – de Ingredientes Farmacêuticos Ativos, IFAs - tem as condições perfeitas para a quebra de patente de modo a não onerar ainda mais o fornecimento de medicação para sua rede de saúde pública.

Esse é o fato comprovado na matéria da Folha já citada acima.  

Na realidade, o licenciamento afeta duas patentes, a do Efavirenz (expira em 2012) e a de um componente do processo de fabricação (2016). O licenciamento valeu até 2012, podendo ser prorrogado. o governo não pode comercializar os remédios importados dos laboratórios indianos Ranbaxy, Cipla e Aurobindo. Poderá apenas distribuí-los em seus programas de saúde. O governo tentou pressionar a Merck a reduzir o preço do Stocrin (nome de marca do Efavirenz) de US$ 1,59 para US$ 0,65 (comprimido de 600mg). As negociações começaram em novembro de 2006. Em 24 de abril, a portaria declarou o "interesse público" do remédio. Na sexta passada houve uma contraproposta de 30%, que não foi considerada "séria". A exigência era 60%. A ameaça de quebra já rendeu descontos em dois antiretrovirais (que inibem a multiplicação do HIV). Em 2001, José Serra (PSDB), então ministro, ameaçou quebrar a patente do Nelfinavir da Roche. Em 2003, Humberto Costa (PT) usou a mesma estratégia com o Kaletra, da Abbott. O Efavirenz é distribuído hoje a cerca de 75 mil pacientes gratuitamente, e o custo programado antes da quebra da patente era de US$ 42 milhões. (https://www.giv.org.br/Not%C3%ADcias/noticia.php?codigo=1674).

O debate conceitual aplicado

Vejamos ambas as situações anteriores. No primeiro caso, não haveria um ganho de escala para o desenvolvimento da penicilina, mantendo-a “in vitro”, ou em nível laboratorial apenas. Alexander Fleming e sua dedicada equipe não estavam pensando em uma droga a ser aplicada em hospitais de campanha, mas para prevenir doenças curáveis em nível mundial. O governo inglês, diante de uma necessidade, aplicou o poder de planejamento em estado de guerra e deu o ganho de escala necessário para tão importante substância. Não é exagero afirmar que a humanidade deve muito à penicilina, e seria impossível conviver em sociedade integrada sem ela.

Já no caso brasileiro tivemos três ministros de dois partidos distintos enfrentando a três laboratórios de envergadura mundial: Roche (Suíça), Abbott (EUA) e Merck (EUA). O país conseguiu impor uma queda de braço progressiva, levando em conta os interesses nacionais primeiro e, posteriormente, operando com possíveis fornecedores (da Índia) para a compra, sem autorização de comercialização.

Os dois casos acima são diretamente relacionados com a Covid-19 e a necessidade de quebra de patentes de todos os Ingredientes Farmacêuticos Ativos (IFAs) que compõem as vacinas aplicadas globalmente, referendadas por países líderes no setor assim como na Organização Mundial de Saúde (OMS). O momento é ideal, pois a administração do estadunidense Joe Biden (Partido Democrata) se propõe a confrontar a capacidade de exportação dos laboratórios chineses e, o outro gigante asiático – a Índia-, concorda com a quebra para atender sua própria população. O Hindustão, flagelado pela pandemia e a estupidez do governo sectário e propagador do chauvinismo hindu do premiê Narendra Modi e o tenebroso partido BJP, decide pela sobrevivência ao invés de pensar em vantagens comparativas no comércio internacional.

O planeta se vê diante de uma “janela de possibilidades”, em que as potências podem concorrer entre si dentro de algum nível de multilateralismo, ao menos no que diz respeito ao controle de suas gigantes químico-farmacêuticas. Está mais que demonstrada a seguinte evidência. Na concorrência intracapitalista mundializada, qualquer potência que controle seus agentes econômicos em termos de projeção estratégica, consegue gerar excedentes de poder em todos os níveis. Apenas a estupidez da mesquinharia neoliberal pensaria o oposto. E o resultado para os países ocidentais é esse: a perda da competição pela hegemonia global diante da China e o crescimento da Ásia, e a vergonha global ao ver quase metade da população do planeta sem acesso à vacina (https://piaui.folha.uol.com.br/quase-metade-da-humanidade-ainda-nao-tem-acesso-vacinas-contra-covid-19/) e menos de 15% da humanidade com condições plenas de receber as duas doses (https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55957986).  

A vida supera o lucro. É preciso quebrar a patente de todos os componentes das vacinas da Covid-19 e organizar um esforço mundial para vacinar a humanidade.  

Bruno Beaklini (Bruno Lima Rocha Beaklini) é cientista político e professor de relações internacionais de origem árabe-brasileira, editor dos canais do Estratégia & AnáEste endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. | facebook.com/blimarocha

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Crédito: Arte de Lívia Magalhães sobre imagens de Flaticon

Link da ilustração: https://jornal.usp.br/atualidades/quebra-de-patente-pode-beneficiar-o-acesso-ao-medicamento-de-paises-pobres/

 

Bruno Lima

Professor de ciência política e de relações internacionais

Formação

Professor de ciência política e de relações internacionais

Redes sociais

Bruno Lima Rocha, doutor em ciência política, jornalista e professor de Relações Internacionais, leciona Relações Internacionais, Ciência Política e Jornalismo e dita os canais Estratégia & Análise, Blog, Twitter e Youtube.

Nascido em 14 de julho de 1972, Bruno Lima Rocha é carioca de origem e gaúcho por adoção, iniciou sua vida política ainda secundarista, em 1988. É formado em jornalismo pela UFRJ, mestre e doutor em ciência política pela UFRGS. Concentra seu trabalho nas áreas de movimentos populares, organizações políticas, análise estratégica, estudos dos órgãos de inteligência e economia política da comunicação.

É autor de cinco livros, dentre estes o "O Grampo do BNDES" (editora Sotese/2003), da dissertação de mestrado e livro "A Polícia Federal após a Constituição de 1988" (PPG Política/UFRGS/2004) e da tese "A Interdependência Estrutural das Três Esferas: uma análise libertária da Organização Política para a radicalização democrática" (PPG Política/UFRGS/2009). Foi bolsista CAPES durante os cursos de mestrado e doutorado em Ciência Política na UFRGS.

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Nascido em 14 de julho de 1972, Bruno Lima Rocha é carioca de origem e gaúcho por adoção, iniciou sua vida política ainda secundarista, em 1988. É formado em jornalismo pela UFRJ, mestre e doutor em ciência política pela UFRGS. Concentra seu trabalho nas áreas de movimentos populares, organizações políticas, análise estratégica, estudos dos órgãos de inteligência e economia política da comunicação.

É autor de cinco livros, dentre estes o "O Grampo do BNDES" (editora Sotese/2003), da dissertação de mestrado e livro "A Polícia Federal após a Constituição de 1988" (PPG Política/UFRGS/2004) e da tese "A Interdependência Estrutural das Três Esferas: uma análise libertária da Organização Política para a radicalização democrática" (PPG Política/UFRGS/2009). Foi bolsista CAPES durante os cursos de mestrado e doutorado em Ciência Política na UFRGS.

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